Ele era um foragido. Um judeu em meio ao tormento da Segunda Guerra
Mundial.
Todos os dias sua consciência o acusava de covardia. Covardia moral
por ter abandonado sua mãe, seus primos, quando lhe foi acenada a
possibilidade de sobreviver, ocultando-se.
Por que somente ele? – Perguntava-se diariamente.
E todos os dias se desculpava com o casal que o mantinha escondido no
porão frio naquele inverno interminável.
Desculpava-se por ter pensado mais na própria vida do que no risco a
que expusera ambos, ao pedir asilo.
E havia a criança. Uma adorável menina que acabara de completar 12
anos.
Naqueles dias de tanta carestia, ela ganhara do pai um livro usado.
Que tesouro!
Ele, o sobrevivente, se desculpara por não lhe dar nada. Afinal,
nada tinha de seu.
Liesel, a garota encantadora, se aproximara e enrodilhara os braços
em torno do pescoço dele:
Obrigada, Max.
Ela era a aniversariante e ele ganhava o presente.
Ao contato daquele abraço, ele levantou as próprias mãos e as
encostou nos ombros de Liesel.
Aquele abraço lhe falava de afeto, família, carinho. Tudo tão
distante, perdido na névoa dos meses, do medo e das incertezas
diárias.
Nos dias que se seguiram, ele decidiu que lhe daria um presente.
Por isso, tomou do livro escrito por Hitler, que recebera para se
instruir e destacou 40 páginas.
Imaginou que precisaria de 13, mas como deveria cometer alguns erros,
resolveu se prevenir com maior número.
Da pilha de latas de tinta que o ocultava, destacou uma, abriu-a e
pintou cada uma das páginas, deixando-as a secar em um varal
improvisado.
Na sequência da semana, ele desenhou e escreveu a história de um
fugitivo. A sua história.
E de seu encontro com uma menina que lhe ofereceu afeição. A ele,
um judeu em terreno alemão.
As páginas receberam dois furos na margem, feitos à faca e depois
foram unidas com barbante.
Então, numa madrugada silente, ele deixou seu esconderijo, subiu os
degraus, foi ao quarto da menina e depositou a preciosidade ao lado
da cama.
Ao despertar, vencendo o medo e o frio, ela desceu os degraus da
escada. Embora não passasse de alguns metros, a distância pareceu
de quilômetros.
O coração lhe batia descompassado no peito. Ela colocou sua mão no
ombro dele, que dormia.
Não o despertou. Sentou-se, reclinou a cabeça, dobrando-se sobre si
mesma e continuando com a mão no ombro dele, deixou-se ali ficar como
quem vela o sono de alguém precioso e inestimável.
Nascia naquele momento uma verdadeira e profunda amizade.
* * *
A afeição surge de formas inusitadas, em estranhas situações.
Percebê-la, manifestar gratidão e alimentá-la é decisão pessoal.
Por vezes, gestos pequenos expressam sentimentos profundos.
Pensemos nisso e prestemos maior atenção a detalhes que somente
parecem ser insignificantes.
Sobretudo, que haja sempre flores de gratidão no jardim das nossas
palavras, no sol do sorriso e nos gestos em retorno ao doador que nos
agracia com sua oferta.
Pensemos nisso...
Redação do Momento Espírita, com base na pt. IV do
livro A menina que roubava livros, de
Markus Zusak, ed. Intrínseca.
http://www.momento.com.br Entre e confira.
segunda-feira, 15 de março de 2010
Presente sem igual
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